quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Mortos vivos

Santo Antonio um dia distribuiu aos pobres todo o pão que havia no convento em que morava, contava o padre numa bela missa. Já em outro canto da cidade dizia um jovem socialista:

- Um mendigo já está morto pelo simples fato de existir. Morto pela indiferença, pela banalização da sua condição, da sua calamidade.

E esses discursos um dia se encontraram... Como toda morte deixa a zelar uma possível ressurreição, aquele que morava na tubulação da avenida principal da grande cidade, havia deixado sua casa muito engraçada, sem teto, sem nada, para buscar o alimento que todo ano vos dava Santo Antônio. Desta vez, negaria o desejo de privar a fome com pedras brancas que tanto lhe prezava a insônia e a vontade de degustar uma realidade mal nutrida.

É claro, que diante de um evento tão casto nos seus dias, deveria ter ao seu lado outros irmãos da rua para compartilhar o momento, afinal a moda agora é compartilhar. Correu com a pouca força que guardava nos seus ossos osteoporóticos até o Viaduto do Café para acordar o parceiro descafeinado que estava dormindo. Este, ao acordar foi ao canto, e de costas para o outro vestiu sua roupa nova para o evento: dois sacos pretos de lixo para cobrir suas vergonhas. A vergonha do peito, a vergonha do sexo, a vergonha do frio que demanda o tempo quase perto de zero. É... Sacos pretos... E preto, é a nova tendência da coleção outono inverno desse ano... É a cor do poder, da elegância, sobriedade, também do luto, a constante na vida desses fiéis andantes. Por isso, percebendo que o que convidava sentia frio, lhe ofereceu outro saco do pacote que havia roubado. Apressaram-se e partiram logo para convidar o último amigo, aquele que morava na Praça da Fé.

Depois de prontos, os três mendigos caminharam até o templo. Em três tudo é mais místico e profundo, foram três reis magos, três dias para a ressurreição, são três pessoas num único Deus, então evidentemente a sorte os esperava naquele santo dia com uma grandiosidade tamanha. Iriam receber o pão, também o corpo, mas de certo, o sangue não. Quem expõe o estômago ao abandono não se queixa de ter seu pão molhado no chorume que corre às valas da caçada.

Passavam alegres e talvez vivos às ruas. Sentiam de longe o prazer de morder o trigo, de tocar a benção, de perceber a vida, já que a melhor parte do evento não era apenas o que oferecia o santo, mas o que oferecia a música e sua composição, a crença perpetuada no respiro, a arte que vinha do ventre de todas aquelas vozes, embora os três não entendessem nada de voz, de arte e de paz, mas perfeitamente de gritos, cinzas e guerra.

Chegaram até as grandes portas da Catedral e sentaram-se na escadaria de fora, bem próximos um do outro para terem seus corpos mais aquecidos, e só então puderam ouvir a celebração enquanto eram olhados com pena e desprezo por aqueles que com um falso merecimento eram qualificados a entrar.

Enquanto esperavam com ansiedade o tempo da multiplicação dos pães, buscavam a saciedade nos seus banquetes imaginários que ardiam em glória. Sorriram. No meio a tantas pessoas, uma delas percebeu esse sorriso incomodando seu eu e apressadamente se afastou. Poucos instantes depois, a mesma voltou acompanhada de outra pessoa que trazia um balde. Os três olharam surpresos para aquelas pessoas e entenderam que havia pães trazidos antecipadamente para eles. Sentiram-se especiais e sorriram mais um pouco, achavam que estavam aprendendo a ser valorizados como homens e com aquele sorriso retribuíram essa valorização àqueles estranhos.

Estando aqueles estranhos incompreendidos, cada vez mais próximos, uniram-se a eles mais dois estranhos que surgiram de uma porta lateral, também cada uma com um balde, como se estivessem prontos para participar de algum ritual breve. Assim, aquilo se tornava mais curioso, teriam pães para uma vida inteira? Recebiam mais que uma benção? Talvez um dia pudesse até ser, mas naquele, a vontade desesperada de ser gente, de ressurgir, foi interrompida por três médios baldes de água bem fria com frias expressões. Eram homens da comunidade, mas não sei... Não eram como Antônio, que um dia se comoveu com os pobres, eram como todos os outros entregues a uma frágil banalidade que densamente sufoca.

Sem pressa, os mortos dali saíram, gemendo corriam as pressas, simbolicamente protegidos por um saco preto impermeável. Foram enfim removidos, entregues ao vento, as ruas, a tantos outros sacos, expulsados por uma água que nem de perto é culpada por alguma purificação. Não matou a sede, e naquele curto tempo nem mesmo a fome, não fora suficiente para afogar, matar os mortos que preferiram ter morrido.

Publicado na revista Capitu.

5 comentários:

  1. E quando essa água gelada jorra dos olhos de quem vê apenas?... "Este é o nosso mundo, o que é demais nunca é o bastante. A primeira vez, sempre a última chance..."

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  2. Este é o nosso mundo... Quantos já não ocuparam o lugar dos mendigos (sentados na escadaria de fora... olhados com pena e desprezo...)?
    E quantos são aqueles que sentem -se merecedores e qualificados a entrar na "catedral"? Difícil quantificar, mas essa realidade está presente em todas classes sociais... Precisamos aprender a nos colocarmos no lugar do outro!

    Cecília Peniche

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  3. Minha sobrinha querida, você é "The best" seller...

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  4. Homens. Prepotentes seres que escolhem dar vida aos seus, e tirar-lhes de seus estranhos.

    Quão belo e sutíl e ser amado com um olhar silencioso.

    Quel cruel é a morte silenciosa pelo mesmo olhar.

    Quero ser mais existencionário, só para existir, fazer viver, e não tranformar o mundo em um moinho de paciência !!

    Daniel Marchi

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